terça-feira, 19 de abril de 2011

UMA GENEALOGIA DO PODER: DO CONVENTO AO CORPO A DISCIPLINA COMO PRISÃO

UMA GENEALOGIA DO PODER: DO CONVENTO AO CORPO A DISCIPLINA COMO PRISÃO

Ângela da Silva Leonardo– UTFPR, angela.sil77@hotmail.com
Devalcir Leonardo –, devalcirleonardo@pop.com.br



RESUMO: O presente artigo pretende elucidar o início da mudança entre dois sistemas disciplinares, a superação do Estado de justiça da Idade Média, que se implementava através da Inquisição para o Estado administrativo que teve seu surgimento nos séculos XV e XVI, para isso, usaremos as teorias de Michel Foucault, especialmente sua obra Vigiar e Punir (1987). Essa mudança política de dominação dos indivíduos pode ser aplicada no romance Memorial do Convento (2002) de José Saramago, escritor português que busca desmitificar a História Oficial, relatando os bastidores sórdidos da elite e exaltando como protagonistas os excluídos e anônimos. Saramago narra História a partir de outro ponto de vista, criando uma história popular, mais atraente, mais sincera e mais humana.


Palavras-chave: Disciplina. História. Literatura


1 INTRODUÇÃO


Ao voltar nossos estudos para Idade Média, verificamos muitos elementos que permeiam o imaginário das pessoas neste período. Foi um momento que podemos considerar como ambivalente para o ser humano, no sentido de proporcionar novidades no campo da ciência, o desenvolvimento da filosofia escolástica e o surgimento das universidades, e obras literárias como, por exemplo, A Divina Comédia, de Dante Alighieri. Portanto, o período que se denomina de medieval representou avanços e retrocessos, como todo processo histórico.
O presente artigo pretende elucidar o início da mudança entre dois sistemas disciplinares, a superação do Estado de justiça da Idade Média, que se implementava através da Inquisição para o Estado administrativo que teve seu surgimento nos séculos XV e XVI e que, para Foucault pouco a pouco foi se governamentalizado. Nosso objetivo não é traçar um panorama da atuação do Santo Oficio, mas sim identificar a atuação destes dois modelos disciplinares Estado de justiça e Estado administrativo presentes no romance Memorial do Convento, (2002) escrito por José Saramago, escritor português, que desenvolve um estilo de narração procurando trabalhar com a História oficial, a preocupação de Saramago é contar a História a partir de outro ponto de vista, criando uma história popular, mais atraente, mais sincera e mais humana. Neste sentido, os seus romances que mais se identificam com a temática medieval são História do Cerco de Lisboa, (1989) e Memorial do Convento (2002), sendo que neste último romance fica bem explícita a questão da Inquisição.
O romance Memorial do Convento apresenta a mudança de estratégia no tocante à formação de uma sociedade disciplinar, que buscaremos demonstrar a partir dos estudos de Michel Foucault em sua obra Vigiar e Punir História da Violência nas prisões (1987) e a contribuição de Claudine Haroche Da palavra ao gesto (1998). Estas duas obras praticamente se complementam, pois Haroche parte dos conceitos fundamentados por Foucault, denominados de substancia ética, para também diagnosticar mudança de mentalidade no processo de forma de uma disciplina diante do Estado Absolutista.
O reinado de Dom João V tenta unir sob seu poder o clero e povo. Para isso, utiliza como mecanismo de dominação a inquisição, que é implementada pela igreja para corrigir os “crimes” contra a doutrina católica. Porém, o rei usa este mecanismo punitivo para salvaguardar os interesses da coroa, tendo em vista a extrema submissão do clero diante dele.


2 A DISCIPLINA PELO OLHAR: O TODO SEM A PARTE NÃO É TODO


Segundo Michel Foucault, foi a partir do final do século XVIII que este modelo de punição, baseado na tortura pública dos condenados, começou a ser abolido, pois a “execução pública é vista então como uma fornalha em que se acende a violência”. Segundo Foucault (1987, p. 12) “[...] em algumas dezenas de anos, desapareceu o corpo suplicado, esquartejado, amputado, marcado simbolicamente no rosto ou no ombro, exposto vivo ou morto, dado ao espetáculo. Desapareceu o corpo como alvo principal da repressão penal”. Estas mudanças que ocorreram no interior dos governos monárquicos não foram por acaso, pois antigos métodos de punição, inaugurados na Idade Média, não correspondiam mais ao momento da história moderna. A igreja considerava o corpo como algo pecaminoso, principalmente o da mulher, portanto justificava-se a tortura como forma de correção espiritual, pois o que lhe preocupava era a alma.
Os governos monárquicos perceberam que a arte de governar não significava a punição pública dos delinqüentes, através de métodos que levassem ao escárnio do corpo. Um bom governo passa a ser aquele que preservava o corpo de seus súditos, pois é do “corpo do rei” que emana o poder. Sendo assim, os súditos acabam sendo representados e disciplinados a partir de um corpo real. Para ilustrar o poder que o corpo passa a ter nesta segunda fase da história moderna, Michel Foucault diz que é através do corpo que vai dar-se a relação de poder, constituindo uma “microfísica do poder”,


Kantorowitz fez uma vez o “corpo do rei” uma análise notável: o corpo duplo de acordo com a teologia jurídica formada na Idade Média, pois comporta além do elemento transitório que nasce e morre um outro que permanece através do tempo e se mantém como fundamento físico mais intangível do reino. [...] Poderíamos imaginar no pólo oposto o corpo do condenado; ele também tem seu estatuto jurídico; reclama seu cerimonial e impõe todo um discurso teórico não para fundamentar o “mais poder” que afeta a pessoa do soberano, mas para codificar o “menos poder” que marcar os que são submetidos a uma punição. Na região mais sombria do campo político, o condenado desenha a figura simétrica e invertida do rei. (FOUCAULT: 1987, pp. 30-31)


Diante disso, a modalidade disciplinar do poder faz aumentar a utilidade dos indivíduos, faz crescer suas habilidades e suas aptidões. Segundo (POGREBINSCHI, 2004, p. 9), o poder disciplinar, com suas tecnologias de poder específicas, torna mais fortes todas as forças sociais, uma vez que leva ao aumento da produção, ao desenvolvimento da economia, à distribuição do ensino e à elevação da moral pública.
Com isso, muda-se a estratégia entre o poder soberano e o poder disciplinador. Segundo Pogrebinschi (2004, p. 9), o poder encarnava na figura do soberano e esse se encontrava, justamente por isso, no centro das relações de poder. Na hipótese do poder disciplinar, não há um centro único de poder e nem mesmo uma figura única que o encarna: o poder encontra-se nas periferias, distribuído e multiplicado em toda parte ao mesmo tempo, materializado que está nos corpos dos indivíduos a ele sujeitados.
No poder disciplinar, o poder é exercido por meio de uma extensa e ameaçadora visibilidade da pessoa do soberano, a quem todos devem conhecer e reconhecer posto sua autoridade ao centralizar os efeitos do poder. Ao contrário, no caso do poder disciplinar, essa relação se inverte. Conforme veremos mais adiante, o poder disciplinar deve manter-se na invisibilidade para funcionar, pois sua invisibilidade ressalta a visibilidade daqueles que a ele se sujeitam, de modo que a sua eficácia é constante e permanente (POGREBINSCHI: 2004, p. 10).
Para que haja um controle permanente do povo, as tecnologias disciplinares exerceram um papel fundamental no condicionamento da vida na sociedade moderna, seu papel é de adestrar os indivíduos para que convivam em um mundo marcado por grandes contradições:


O poder disciplinar é com efeito um poder que, um vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior ‘adestrar’; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar mais e melhor. [...] A disciplina ‘fabrica’ indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício (FOUCAULT: 1987, p. 153).


Assim as sociedades democráticas criaram um condicionamento da vontade humana, sua prática e seu existir. Toda essa tecnologia de poder não se encontra em um único centro e não se aplica a um único grupo social, ela está ramificada em todo corpo social:


A ‘disciplina’ não pode se identificar com uma instituição, nem com um aparelho; ela é um tipo de poder, uma modalidade para exercê-lo, que comporta todo um conjunto de instrumentos, de técnicas, de procedimentos, de níveis de aplicação, de alvos; ela é uma ‘física’ ou uma ‘anatomia’ do poder, uma tecnologia (FOUCAULT: 1987, p.189).


Essas constatações de Foucault são mais explícitas a partir do século XVIII, quando as cidades passam por um rápido crescimento demográfico. Diante disso, como controlar as multidões diante das vitrines do capitalismo com um baixo custo e, ao mesmo tempo, assegurar um alto grau de eficiência. Para isso, foi necessário criar normas e hierarquia e disseminar um sentimento contra o autonomadismo:


De modo global, pode-se dizer que as disciplinas são técnicas para assegurar a ordenação das multiplicidades humanas. [...] Mas é próprio das disciplinas [...] tornar o exercício do poder o menos custoso possível; fazer com que os efeitos desse poder social sejam levados a seu máximo de intensidade e estendidos tão longe quanto possível; ligar enfim esse crescimento ‘econômico’ do poder e o rendimento dos aparelhos no interior dos quais se exerce (sejam os aparelhos pedagógicos, militares, industriais, médicos), em suma fazer crescer ao mesmo tempo a docilidade e a utilidade de todos os elementos do sistema. Esse triplo objetivo das disciplinas responde a uma conjuntura histórica bem conhecida. É por um lado a grande explosão demográfica do século XVIII: aumento da população flutuante (fixar é um dos primeiros objetivos da disciplina; é um processo de antinomadismo); mudança da escala quantitativa dos grupos que importa controlar ou manipular (FOUCAULT: 1987, p.191).


As técnicas encontradas para garantir a neutralização daqueles que contrariassem o estilo de viver das sociedades disciplinares foram eficientes, porém não menos violentas, apresentando sua atuação por outros meios tanto em relação aos excluídos ou delinquentes, por meio da força policial, quanto em relação aos outros indivíduos sociais, como estudantes e operários. Para manter a disciplina entre os estudantes, as escolas, por meio de sua arquitetura, anularam os motins; com relação aos operários, a construção de vilas operárias representaram uma hierarquia e um distanciamento, objetivando a individualização dos sujeitos. A partir dessa constatação, Foucault (1987: p.192-193) debate o contrapoder:


A disciplina [...] deve também dominar todas as forças que se formam a partir da própria constituição de multiplicidade organizada; deve neutralizar os eleitos de contrapoder que dela nascem e que formam resistência ao poder que quer dominá-la: agitações, revoltas, organizações espontâneas, conluios – tudo o que pode originar das conjunções horizontais. Daí o fato de as disciplinas utilizarem processos de separação e de verticalidade, de introduzirem entre os diversos elementos de mesmo plano barreiras tão estanques quanto possível, de definirem redes hierárquicas precisas, em suma de oporem à força intrínseca e adversa da multiplicidade o processo da pirâmide contínua e individualizante.


Muitas vezes, nas sociedades disciplinares, os mecanismos de neutralização do poder devem ser aplicados de forma radical, para garantir um sentimento de pseudo-segurança, pois essa sociedade foi concebida por meio do medo. Diante disso, criou-se uma arquitetura básica que simulasse a estrutura de uma prisão. Foucault alerta para o modelo de estrutura social, que se parece com prisões, com fábricas, com hospitais, com escolas, todas elas com seus juízes e seus exames de conduta:


A ‘observação’ prolonga naturalmente um justiça invadida pelos métodos disciplinares e pelos processos de exame. Acaso devemos nos admirar que a prisão celular, com suas cronologias marcadas, seu trabalho obrigatório, sua instância de vigilância e de notação, com seus mestres de normalidade, que retomam e multiplicam as funções do juiz, se tenha tornado o instrumento moderno de penalidade? Devemos ainda nos admirar que a prisão se pareça com fábricas, com escolas, com os quartéis, com os hospitais e todos se pareçam com prisões? (FOUCAULT, 1987, p.199).


Essa arquitetura baseada na coerção e no adestramento apresenta uma semelhança muito próxima a um zoológico. Os hospitais criados a partir dessa concepção arquitetônica também aplicaram, em suas prática, o controle: “Cada um é trancado em uma gaiola, cada um à sua janela, respondendo o seu nome e se mostrando quando é perguntado, é a grande revista dos mortos e dos vivos” (FOUCAULT, 1987, p.174).
Todo esse processo de controle visa estabelecer dispositivos disciplinares que combatam os princípios contrários à sociedade disciplinar; portanto estabelecer uma ordem ao caos é uma forma de assegurar o controle. Conforme afirma Foucault (1987, p.175), “[...] Atrás dos dispositivos disciplinares se lê o terror dos ‘castigos’, da peste, das revoltas, dos crimes, da vagabundagem, das deserções, das pessoas que aparecem e desaparecem, vivem e morrem na desordem”.
Segundo Foucault, a grande descoberta, que representou uma espécie de “ovo de Colombo” no processo de formação e de consolidação de uma sociedade disciplinar, foi o Panóptico, criado no século XVIII, por Jeremy Bentham. Essa tecnologia de poder representou uma das gêneses das mais importantes da sociedade disciplina:


O Panóptico de Bentham é a figura arquitetural dessa composição. O princípio é conhecido: na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar. Pelo efeito da contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia. [...]. Em suma, o princípio da masmorra é invertido; ou antes, de suas três funções – trancar, privar de luz e esconder – só se conserva a primeira e suprimem-se as outras duas. A plena luz e o olhar de um vigia captam melhor que a sobra, que finalmente protegia. A visibilidade é uma armadilha (FOUCAULT, 1987, p.177).


A disciplina por meio do olhar se dá na relação metonímia que há entre o todo e a parte, neste o panóptico vai simbolizar o todo por meio da estrutura, no romance Memorial do Convento ocorre a fusão entre Estado e igreja, pois na arquitetura do Convento de Mafra apresenta também um misto de palácio e igreja. Sendo assim, o processo disciplinar se dá em dois níveis simultâneos a estrutura e o ritual servindo como modeladores da conduta humana.
Para Claudine Haroche, em seu estudo Da palavra ao gesto, para realizar um bom governo o rei deve implementar,


Uma política cultural que privilegie um estilo que depende essencialmente do olhar, do fazer ver, em suma, da ostentação. Um estilo majestoso que, ao se acompanhar da domesticação dos corpos, pretende impressionar celebrando a grandeza do rei; um estilo que se acompanha do silêncio do Príncipe, mas também, quando necessário, do emudecimento dos corpos, dos espíritos, da fala dos súditos. (HAROCHE, 1998, p. 53)


Esta política que “depende essencialmente do olhar” vai ser uma estratégia muito utilizada nos governos monárquicos, pois ao mesmo tempo em que educa o povo, também reforça a hegemonia do rei sobre os seus súditos. Haroche (1998, p. 107) afirma que “Nessa política de comunicação, nessas cerimônias e nesses rituais de corte, o papel do olhar é central. Toda uma tradição antropológica e política não cessa de repetir: o povo ‘inferior’ tem necessidade mais de ver do que de ouvir; é necessário portanto exibir para satisfazê-lo.” Ao apresentar o tratado sobre a educação dos príncipes, Haroche diz que:


O povo tem sempre o olho do rei. Maquiavel, evocando a percepção que o povo tem do príncipe, observa que ‘os homens em geral julgam mais com os olhos do que com as mãos, pois cada um pode facilmente ver, mas sentir, bem poucos. Tomo mundo vê bem o que parece ser, mas poucos têm o sentimento daquilo que você é...”(HAROCHE, 1998, p.107)


Segundo um estudo desenvolvido por Valter Praxedes (2001), José Saramago procura lançar um “olhar pedagógico” para História oficial. Para isso, Saramago desenvolve seu estilo de narração recebendo


...influência da chamada “Nouvelle Histoire” francesa para o tratamento literário da história portuguesa, em particular a influência do historiador George Duby, deve ser enfatizado aqui que Saramago defende a idéia de que entre historiografismo e literatura pode haver uma complementalidade. Segundo seu entendimento o historiador e o ficcionista podem cometer omissões que produzem representações distorcidas sobre a realidade e que estas omissões só podem ser sanadas através da imaginação de ambos. Para Saramago deve se manter ‘... como suporte os tatos da História’, mas deve-se abandonar “...a antiga relação entre eles, de sujeição resignada ao império em que se haviam constituído”, para que se torne possível uma “... compreensão dupla: a do Homem pelo Fato, a do Fato pelo Homem...” (PRAXEDES, 2001, p. 51-52)


Nesta perspectiva, é que vai ser construído o enredo do romance Memorial do Convento, apresentando um olhar para História oficial representada nos personagens Dom João V, sua rainha D. Maria Ana e clero. Os personagens da história ficcional, representantes das camadas populares, Baltasar Sete Sóis e Blimunda Sete Luas são os protagonistas, portanto a narrativa será apresentada a partir do ponto de vista do povo simples. Saramago procura mostrar a partir do cotidiano do povo a participação na construção da História oficial, sem perder de vista os sonhos, as paixões e o desejo de liberdade que é próprio do ser humano,representado no romance de forma alegórica na construção de uma máquina voadora chamada de “passarola”, idealizada pelo padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão, personagem histórico utilizado no romance de forma ficcional. passarola, que tem como combustível o éter acompanhado “das vontades dos vivos” (SARAMAGO:2002,p.122), a responsabilidade de capturar o combustível para a máquina voar era de Blimunda, pois, com seus poderes especiais de olhar por dentro das pessoas e conhecer suas vontades, suas doenças ou até mesmo do que essas pessoas morreriam, Blimunda revela que “... a vontade é uma nuvem fechada, Que é uma nuvem fechada, Reconhecê-la-ás quando a vires, experimenta em Baltasar, para isso viemos aqui, Não posso, jurei que nunca o verei por dentro...” ( SARAMAGO: 2002,p.122). Blimunda promete nunca olhar por dentro de seu companheiro, pois não gostaria de descobrir a causa de sua morte. Portanto, Blimunda é personagem-chave para o êxito da experiência de fazer a máquina voar. No entanto, José Saramago elabora um enredo valorizando os excluídos da História oficial. Neste sentido, o romancista valoriza o papel da mulher, que sempre ficou nos bastidores, na sombra da ideologia patriarcalista. Um outro “olhar pedagógico” de Saramago é valorizar o coletivo: os personagens são singulares, mas ganham vitalidade e sentidos quando atuam por uma causa, por um sonho coletivo. Neste sentido, Padre Bartolomeu de Gusmão, o músico Domênico Scarlatti, Baltasar e Blimunda representam de forma simbólica que os grandes feitos históricos não são mérito de um único herói e sim de uma coletividade.
O empreendimento que faz parte da História oficial é a construção do convento de Mafra, na cidade de Mafra, em Portugal, iniciado em 1717. Esse grandioso monumento foi construído para recompensar a aliança entre a Igreja e o Estado, e também para ostentação do poder da igreja diante de outras religiões. Assim, tanto o poder do Estado quanto o poder da igreja estavam em comunhão, portanto a aliança se prolongaria em troca de favores e cargos, mesmo que para isso fosse necessário transformar um rei ditador e absolutista em um santo:


... Ao ouvir que queria el-rei ampliar o convento para tão grande número de frades, de oitenta para trezentos, imagine-se, o provincial, que fora ali sem ainda saber da novidade, derrubou-se no chão dramaticamente, beijou com abundância as mãos da majestade, e enfim declarou, com voz estrangulada, Senhor, ficai seguro de que neste mesmo momento está Deus mandando preparar novos e mais sumptuosos aposentos no seu paraíso para premiar quem na terra o engrandece louva em pedras vivas, ficai seguro que cada novo tijolo que for colocado no convento de Mafra, uma oração será dita em vossa intenção, não para a salvação da alma, que vos está garantidíssima pelas obras, mas sim como flores da coroa com que haveis de apresentar-vos perante o supremo juiz, queria Deus que só daqui por muitos anos, para que não esmoreça a felicidade dos vossos súbditos e perdure a gratidão da igreja e ordem que sirvo e represento. ( SARAMAGO: 2002,p. 273)


O convento que ostenta poder e riqueza pode ser melhor dimensionado na imagem abaixo:



Figura: 1 Disponível em: http://blogluso-carioca.blogspot.com/2009_03_01_archive.html


Para compreender o tamanho deste convento e o que ele representou para reino de Portugal, o estudioso Eduardo Calbicci relata que o


[...] lançamento da primeira pedra deu-se em 17 de novembro de 1717, e a sagração da basílica e do convento ocorreu em 22 de outubro de 1730, data do aniversário de 41 anos do rei. A obra, neste ano chegou a reunir 45000 operários além de 7000 soldados.
O término da construção, entretanto, só aconteceu no reinado de D. José (1714-1777). [...] Ao todo, são 37 790 metros quadrados. O edifício tem 800 salas e quartos, 300 celas, 4500 portas e janelas, 154 escadaria e 29 pátios; os sinos da basílica pesam juntos 217 toneladas; a biblioteca conta com mais de 40 000 volumes e possui um corredor central de mais de 80m. Esses números falam por si e dão sinais da grandiosidade do convento. O que mais assusta é que essa massa de pedra foi erguida em apenas 13 anos.. (CALBUCCI, 1999, 25-26).


Como vimos, os dois empreendimentos vão estruturar o enredo do romance. José Saramago apresenta de forma alegórica o jogo de poder entre o Estado e Igreja, pois cada instituição buscava ocupar o coração e a mente do povo para legitimação tanto do poder real quanto do poder divino. Para isso, utilizam-se dos mecanismos de coação e repressão para fazerem cumprir seus objetivos. A igreja controla e pune através do Santo Oficio, o Estado controla e pune através da força das leis que emanam da vontade de um rei absolutista. Do outro lado da história ocorre à construção da máquina voadora, a passarola, que vai também representar de forma alegórica o desejo do ser humano de romper com as arbitrariedades do absolutismo. Como afirma Calbucci (1999, p. 31) a construção da passarola seria o contraponto fantástico ao poder inefável da engenharia civil portuguesa no século XVIII. O sonho de voar é o revés da arbitrariedade do absolutismo de D. João V.


2.1 VIGIAR E PUNIR PARA FORMAÇÃO DE UMA SOCIEDADE DISCIPLINAR


O romance Memorial do Convento apresenta elementos estéticos que o enquadram numa linguagem barroca, pois o choque entre duas idéias contrárias interliga o drama dos personagens Blimunda e Baltasar que, constantemente, estão a fugir do poder onipresente da igreja representado no Santo Oficio. Um gesto concreto deste constante conflito fica marcado logo no início do romance, quando a mãe de Blimunda é condenada ao exílio pelo Santo Oficio. Saramago narra este drama a partir do ponto de vista da mãe de Blimunda, criando um painel social no desenrolar das punições públicas:


[...] Blimunda, onde estará, onde estás Blimunda, se não foste presa depois de mim, aqui hás-de vir saber da tua mãe, e eu te verei se no meio dessa multidão estiveres, que só para te ver quero agora olhos, a boca me amordaçaram, não os olhos, os olhos que não te viram, coração que sente e sentiu, ó coração meu, salta-me no peito se Blimunda ai estiver, entre aquela gente que está cuspindo para mim e atirando cascas de melancias e imundícies, ai como estão enganados, só eu sei que todos podem ser santos, [...]
Blimunda, Blimunda, Blimunda, filha minha, e já me viu, e não pode falar tem que fingir que não me conhece ou me despreza, mãe feiticeira e marrana ainda que apenas um quarto já me viu[...].
[...] deu volta inteira a procissão, foram açoitados os que esse castigo haviam tido por sentença, queimadas as duas mulheres, uma primeiramente garrotada por ter declarado que queria morrer na fé cristã, outra assada viva por perseverança contumaz até na hora de morrer, diante das fogueiras armou-se um baile, dançam os homens e as mulheres, el-rei retirou-se, viu, comeu e andou. ( SARAMAGO: 2002, 51-52).


Um outro duro choque para Baltasar e Blimunda foi a morte misteriosa do Padre Bartolomeu, sendo o idealizador da passarola um grande intelectual, pois era um apaixonado por literatura e filosofia, “nascera no Brasil e novo veio pela primeira vez a Portugal, de tanto estudo e memória que, sendo moço de quinze anos, prometia, e muito fez do que prometeu, dizer de cor todo Virgílio, Horácio, Ovídio, Quinto Cúrcio, Suetónio, Mecenas e Sêneca, para diante e para trás ”( SARAMAGO: 2002, 59). Diante da perda de tão grande personalidade e amigo Baltasar fica em profunda tristeza, “É sabido que Baltasar vai beber, mas não se embriagará. Bebe desde que soube da morte do padre Bartolomeu Lourenço, triste morte, foi um abalo muito grande, como um terremoto profundo que lhe tivesse rachado os alicerces, deixando embora, à superfície as paredes aprumadas ”(SARAMAGO: 2002, p. 224).
A última morte, a mais comovente de todas, acontece no desfecho trágico de Baltasar, que também foi queimado pelo Santo Oficio. Após nove anos de procura por Baltasar caminhando vila por vila e cidade por cidade Blimunda encontra seu companheiro preste a ser consumido pelo fogo inquisidor, assim vivenciamos este último momento de Baltasar:


Milhares de léguas andou Blimunda, quase sempre descalça. A sola dos pés tornou-se espessa, fendia como cortiça. Portugal inteiro esteve debaixo destes passos algumas vezes atravessou a raia de Espanha [...].
São onze os suplicados. A queima já vai adiantada, os rostos mal se distinguem. Naquele extremo arde um homem a quem falta a mão esquerda. Talvez por ter a barba enegrecida, prodígio cosmético da fuligem, parece mais novo. E uma nuvem fechada está no centro de seu corpo. Então Blimunda disse, Vem. Desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sois, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia e a Blimunda. (SARAMAGO: 2002, 346-347)


Com base nestas teorias sobre a formação de uma sociedade disciplinar podemos observar que no romance Memorial do Convento, de José Saramago, no reinado de Dom João V pode-se perceber a atuação de dois sistemas disciplinares, um marcado pelo poder onipresente da Igreja através do Santo Oficio, que persegue os personagens Blimunda e Baltasar, culminando na morte de Baltasar e do padre Bartolomeu. Este sistema ainda pressupõe que, através do castigo ao corpo e da exposição pública do supliciado, possa dominar e disciplinar as pessoas pelo medo. Um outro sistema que se configura como uma transição para um outro referencial de poder e disciplina, ocorre na construção do convento de Mafra: o rei quer também ser um poder onipresente na vida do povo, portanto a construção do convento simboliza esta força pois, como afirmou Haroche, sua política “depende essencialmente do olhar”. A construção do convento de Mafra concretiza uma política de comunicação de ostentação de poder que perpetuaria o reinado de Dom João V mesmo após sua morte, pois se constituiria um poder representado no “corpo do rei”. Diante disso, a construção do convento simboliza, de forma metonímica, a presença do rei tanto na alma de seus súditos como na mente deles, constituindo, assim, um novo processo de disciplina marcado pela ostentação, pela etiqueta e pela ritualização dos eventos.


3 CONSIDERAÇÕES FINAIS


Portanto, a passagem de sistema disciplinar de um Estado de justiça que teve seu início na Idade Média, na qual se aplicava um controle sobre os súditos por meio da fé, o Santo Ofício cumpre um papel disciplinador, quem ousasse transgredir as “leis” e os dogmas da Igreja e do Estado se fazia justiça em nome de Deus. A exposição pública do suplicado servia de exemplo para tornar o fato sempre presente na memória coletiva. A partir da instituição de um Estado administrativo o rei passa a governar não apenas a partir da fé do povo, mas também a partir do corpo e da alma de seus súditos, para isso, a ostentação do poder através de rituais e etiquetas passa a ser o mecanismo ideológico de controle da população.
Um exemplo de ostentação foi a construção do convento de Mafra, que passa a personificar a onipresença do poder de Dom João V. José Saramago apresenta a História oficial lançado um olhar indisciplinador, pois sua intenção é justamente desmistificar o poder do rei e do clero mostrando um outro lado da história que poucos conhecem, portanto o romance Memorial do Convento, apresenta todo um painel da sociedade monárquica, Saramago desmistifica a História oficial, construindo uma outra história popular movida pelas vontades humanas dos anônimos como Blimunda e Baltasar.


REFERÊNCIAS

CALBUCCI, Eduardo. Saramago um roteiro para os romances. Cotia – SP: Ateliê
Editorial, 1999.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Tradução de Roberto Machado. 3.
a ed. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1979.

______Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Lígia M. Pondé Vassallo. 5º ed. Petrópolis: Vozes, 1987.

HAROCHE, Claudine. Da palavra ao gesto. Tradução de Ana Montoia e Jacy
Seixas. Campinas: Papiruas, 1998.

POGREBINSCHI, Thamy. Foucault, para além do poderdisciplinar e do biopoder. In. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, São Paulo, n.63 - 2004, disponível em: , no dia: 20/09/2007.

PRAXEDES, W. L. A Elucidação pedagógica, História e Identidade nos
Romances de José Saramago. 2001. Tese (Doutorado) – Universidade de São
Paulo, São Paulo.

SARAMAGO, José. Memorial do Convento. 27º ed. – Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2002.

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